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Entre o Perto e o distante - Luiza Interlenghi

As distâncias configuram variações na paisagem que interligam lugares, pessoas, coisas. Três séries de Cláudia Melli – Tudo da vida é um país estrangeiro, Série Azul e Lugares onde nunca estive – rememoram, contraditoriamente, a estranheza de lugares comuns. Resultam da apropriação e edição de fotografias coletadas em diferentes mídias, interligadas por desenhos que as transformam, unem, separam e eventualmente apagam, para reinventá-las com a pintura. Encontram nas sutilezas do claro-escuro, na modulação dos contrastes, sinais de uma nostálgica experiência do sublime, levando ao limite uma crítica do funcionalismo que, embora descentrada e sujeita a múltiplas fraturas, permanece urgente e intempestiva.


Certa claridade no céu nublado, vigas de um telhado, fachadas, colunas, fiações, muradas – vestígios recolhidos no extrato em que se depositam as lembranças –, encontram-se em superfícies transparentes e sob o mesmo enquadramento. Paisagens vazias, em preto e branco, revisitam o desafio à memória e ao tempo lançados pela imagem fotográfica. Na trilha da verossimilhança aberta pela fotografia, estas pinturas e montagens buscam o imaginário, as recordações e, em meio ao habitual, vão ao encontro de um mundo ainda não visto, atemporal. 


A fotografia, quando foi considerada uma comprovação daquilo que meramente representa, levou à substituição da imprecisão das lembranças pela certeza implicada na reprodução técnica. Porém, em contraste com o caráter indicial da fotografia, pintar significa, na tradição moderna, dar ao que é pintado um valor maior que ao que é visto. Com pinturas que tangenciam o fotográfico, Claudia Melli afirma a presença de um lugar que nunca “foi”, revisitando o conflito histórico entre razão e emoção, que também o cinema, radicalizou. Suas paisagens retomam o tradicional dilema entre real e imaginário ao buscarem uma conciliação entre a reprodução técnica e o artesanal, entre o cálculo implicado na edição e a intensidade emocional da manipulação do pincel. 


Na série Tudo da vida é um país estrangeiro, a forma triangular de uma estrada deserta lançada em direção ao horizonte – um ícone da sociedade moderna, capitalista, e de sua autocrítica pela geração beat –, equivale à proa que, solitária, aponta um lugar que é pura distância a ser percorrida. As variações da luminosidade convocam à espera. Certa indefinição no encontro entre as pinceladas e a tentativa de, com a imagem, tocar o infinito mantêm o tempo em suspensão. O que virá? Como no clássico filme de Mario Peixoto, no qual uma embarcação à deriva navega o ilimitado, a estrada é um emblema do limite individual diante da natureza, recorrente representação romântica do que está por vir . Na Série Azul (onde a cor é imaginária), claro e escuro, alto e baixo, agitado e sereno, contrapontos mantidos por Melli em relativo equilíbrio, retomam certa transcendência revelada no encontro entre um vasto céu e o oceano. O vazio, porém, retira da imagem o que é excesso, ameaça apagá-la, reserva uma desejável pausa à visão saturada pela pragmática do mercado. Essa série abre vastos espaços para sutilezas que não encontram lugar nas classificações funcionais dos bancos de imagens digitais, cujos padrões estéticos, finalmente, demonstram a crescente vinculação da experiência do sublime ao consumo.


A arquitetura em labirinto, as proliferações virais, o policentrismo dos modelos de circulação da informação em rede marcam o enfraquecimento da bipolaridade que prevaleceu no século 20, identificada com a contraposição entre natureza e cultura, conceito e afetos. A retomada por Claudia Melli da paisagem, um gênero que pretendeu superar essa dicotomia, leva a uma espécie de recuo do corrente fascínio pelo sublime tecnológico em benefício de antigos mistérios escondidos nas distâncias, entre o perto e o distante, na grandeza imprevisível que mantém toda construção e a própria cultura sob risco iminente.

Luiza Interlenghi
Rio de Janeiro, fevereiro de 2012

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