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E aqueles que foram vistos dançando

E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música*

*Friedrich Nietzsche

 

Neste seu novo trabalho a artista Claudia Melli mantém a sua já característica semelhança transversal - mas apenas ilusória - com o reino da fotografia, através da captura e representação, aparentemente objetivas e realistas, da perspectiva de um lugar exterior. Este nos aparece, ao primeiro olhar, como um espaço físico e geográfico determinado, e é com este espírito que a artista nos tem até aqui revelado paisagens predominantemente despidas de sujeito, de relação e de história; mas carregadas de humanidade, de sentimento, e de um tempo intenso, difuso e intemporal. 

 

Muitas vezes, os próprios elementos centrais de suas obras - nuvens, carris, rodas gigantes, o mar -, sérios representantes simbólicos do imparável movimento de todas as coisas, e da suprema impermanência que tudo habita, nos apareciam estáticos num lugar parado, presos num tempo imanente, como que adormecidos, suspensos, retirados do mundo. Talvez a notória ausência de sujeito nessas obras do passado ainda recente da artista, contribuísse fortemente para a ilusão de ali se retratarem sobretudo paisagens do mundo físico, e não ambientes e lugares da interioridade, do psicológico, e de um outro tempo que não o cronológico. Mas já eram outros os movimentos e as ambiências, os momentos e as paragens, que não aqueles da materialidade, do sólido, do concreto... 

 

Agora, parece-nos mais claro ainda, frente a esta nova obra de imensa força, fluidez e movimento - ao mesmo tempo circular e etérea: um percurso mágico de livre desdobramento e expressão de uma individualidade subjetiva, mas também vitalmente animado com um forte valor primordial e arquetípico, e de cunho claramente transpessoal -, que as paisagens de Claudia Melli nos cantam e interrogam de uma beleza e de uma dramaticidade que habitam profundas em nossos mais sutis domínios emocionais, fantásticos, imaginativos e sensoriais. 

 

Os perfeitos retratos que a artista revela e pinta - com tal força e realismo que jamais se duvidará da real e sólida existência desses não-lugares, algures, num espaço tão próximo e profundo quanto esquecido e distante - só poderiam habitar o vidro, senhor e suporte da mais suprema transparência. Pois são eles mesmos registros lúcidos e  especulares, feitos com a maior entrega, a maior compreensão e a maior clareza, das oceânicas e majestosas forças que nos rodeiam e nos habitam. Se a natureza é inalcançável e suprema, e seus caprichos e desígnios insondáveis, ela é também espelho do maior que somos, e assim nos revela a potência e a beleza extremas que nos compõem, e que aguardam, pacientemente, a nossa mais vital dança: em gestos de libertada entrega, consciência e descoberta.          

 

A própria artista menciona o Kairos - o tempo supremo, mais elevado - por oposição ao Kronos - o tempo mensurável, pequeno -, como elemento presente no seu trabalho: "...uma relação mais orgânica com o tempo...", como diz. Pois nós arriscamos aqui sublinhá-lo como uma transversal constante e paradigmática de todo o seu trabalho. E se aqui surge Pina Bausch como inspiração, símbolo e sujeito - coreógrafa criativa e lúcida como poucas, intérprete maior do Zeitgeist de seu tempo -, e se Friedrich Nietzsche empresta seu famoso paradigma ao título desta obra, ambos reforçam e reafirmam estarmos no território do sutil, do primordial, daquilo que apenas se ouve, mas que logo nos transforma assim que se escuta. Afinal, é a nossa própria voz que ecoa, feminina, fecunda, etérea e íntima, distante... 

 

Então, a insanidade que Nietzsche refere e Pina Bausch ilustra - aqui desdobrada num fio de movimento simultaneamente condutor e libertário, sequencial e improvisado, de uma dança em que o bailarino se repete e avança, mas em que jamais é o mesmo, pois vibra, varia e muda, sempre na inconstância transformadora e livre do momento presente -, essa loucura que apenas mal escutamos, distraídos que somos nas manobras repetidas dos ponteiros pequenos de um relógio - presos a um julgar ser e a esse fazer -, é afinal tudo o que de maior constituímos, seremos, ambicionamos.    

 

E tudo isso nos compõe e nos habita, e claramente se manifesta na vitalidade e na existência solta do próprio corpo. Ou, como escreve Claudia Melli: "A linguagem do corpo ultrapassa barreiras de língua e de cultura. É a fala mais potente e honesta que se pode ter. E dançar, é como ter asas..."

 

 

 

Jorge Emanuel Espinho

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